COLO DE MÃE É MELHOR.


O sistema escolar brasileiro está falido. É uma máquina de produção de analfabetos funcionais, onde é mais frequente deseducar-se que aprender.


Uma boa definição de loucura é repetir a mesma ação esperando resultados diferentes. Esta é, todavia, a especialidade de nossos governantes.

O ensino brasileiro estava muito ruim. Aumentaram o ano letivo, passando de 180 para 200 dias. Ficou péssimo. A nova solução, como sempre, é mais do mesmo! As crianças agora serão arrancadas por lei dos braços da mãe na tenra idade de 4 aninhos, para serem jogadas nos depósitos de crianças que hoje passam por escolas, onde aprenderão a escrever errado, inserir receita de miojo na prova e mesmo assim passar de ano até se ver em uma faculdade, ainda analfabetas funcionais.
Diz-se que o Estado finge que paga, o professor finge que leciona e os alunos fingem que aprendem. Já é péssimo que isso seja, em grande medida, verdade. Há professores heroicos, que fazem do magistério um sacerdócio. Mas não são nem poderiam ser a maioria, e raros são os que mantêm o entusiasmo, ano após ano, perdendo a saúde, sem remuneração condigna, sujeitos a alunos cada vez menos educados, logo menos capazes de aprender... ou de se comportar em sala.
E a solução proposta para os alunos que não passam de ano é que sejam passados – pois outra coisa não é a tal “progressão continuada” senão uma obrigação de aprovar o analfabeto e empurrá-lo para a série seguinte, em que evidentemente aprenderá ainda menos por não ter aprendido o que deveria ter vindo antes, a base para a próxima matéria.
O sistema escolar brasileiro está falido. É uma máquina de produção de analfabetos funcionais, onde é mais frequente deseducar-se que aprender – aliás, o Bonde das Maravilhas, último horror do funk carioca, surgiu numa escola...
E essa triste palhaçada agora há de começar aos 4 anos de idade!
Quando meus filhos eram pequenos, algumas vezes perguntaram à mulher da minha vida em que creche eles estariam. A resposta era sempre a mesma: “Creche?! Eles têm Mãe!” Dava até para ouvir o “M” maiúsculo. A indignação dela é compreensível: a educação da criança compete primordialmente à mãe e ao pai. Em alguns casos – como quando a mãe se vê forçada a trabalhar fora ainda na primeira infância dos filhos –, é necessário que uma criança seja posta em uma “escolinha” antes de aprender a ler, mas é sempre um sacrifício. Melhor seria se estivesse com a mãe, e o ideal seria que estivesse com a mãe e o pai.
Mais valeria fechar o MEC e oferecer bolsas para os mais pobres em escolas particulares. Em vez disso, vão é arrancar as criancinhas de 4 anos do colo da mãe. Loucura.

Publicado no jornal Gazeta do Povo.

Carlos Ramalhete é professor.

fonte: MÍDIA SEM MÁSCARA.

A ignorância é cult...


A Ignorância é cult...


Quando a criança aprende uma língua, é natural que, antes mesmo de ler e escrever, identifique e associe palavras ao significado. Muitos pais se surpreendem quando ela aponta para um livro e repete exatamente o que está escrito. Cachorro, gato, backyardigans... Especialistas em educação infantil não veem surpresa. É o processo natural, dizem.
Por isso, na infância, quanto mais cedo melhor para elas aprenderem. Vale tanto para o português quanto para uma língua estrangeira. Sim, elas são capazes de entender ─ ouvir e falar ─ outro idioma mesmo sem conhecer nada de ortografia, gramática etc. Nessa fase, é normal que escrevam cachorro com x e enxergar com ch.
Muitos pais até se divertem. Afinal, mesmo “errando”, o filhinho ou a filhinha segue uma lógica que faz todo o sentido. E, até então, ele ou ela ainda é apenas uma criança. A próxima etapa será dominar a norma culta. O processo é praticamente o mesmo em todo o mundo ocidental.
No Brasil, porém, algo de muito estranho acontece. Gente que deixou de usar fraldas muito tempo atrás continua a grafar enxergar com ch e, por incrível que pareça, está chegando à universidade ainda nesse estágio e recebendo aplausos do governo. O ministério da Educação não “encherga” nada de errado nisso. É capaz de dar nota mil para a redação do gênio!
Sim, merece repúdio o professor que, em vez de ajudar, humilha o estudante que erra a grafia óbvia de uma palavra. É uma estupidez. Mas daí ao MEC optar pela pedagogia do “nóis pega o peiche” constitui sandice ainda maior. Imagine médicos, jornalistas, professores, advogados e doutores que o país formará daqui para frente. O prodígio pode até se tornar ministro do Supremo, pois no Brasil tudo é possível, mas pelo próprio mérito dificilmente passará num concurso para juiz de primeira instância.
E tudo parte do coitadismo: a teoria de que se está combatendo supostas convenções elitistas e suas regras discriminatórias à sabedoria natural dos pobres e oprimidos. A linguagem escrita evolui e incorpora modismos, progressos e retrocessos da fala. Mas, nunca antes na história da humanidade, país nenhum tentou elevar a ignorância à condição de norma culta. O Brasil será pioneiro nesse quesito.
É verdade que alguém pode ser sábio sem nunca ter posto o pé na escola. Assim como merece aplauso o poeta popular capaz de superar qualquer vate Ph.D─ apesar de os versos não seguirem as regras da academia. Mas eles são a exceção. A regra costuma ser outra bem diferente: é aquela que não passou do chachorro com x se transformar em adulto jeca. Ou pior: num doutor jeca.

Por Plácido Fernandes Vieira
Placidofernandes.df@dabr.com.br CorreioBraziliense- Opinião. 20 de março de 2013

A IMBECILIZAÇÃO DO BRASIL.


Há muito tempo o Brasil não produz escritores como Guimarães Rosa ou Gilberto Freyre. Há muito tempo o Brasil não produz pintores como Candido Portinari. Há muito tempo o Brasil não produz historiadores como Raymundo Faoro. Há muito tempo o Brasil não produz polivalentes cultores da ironia como Nelson Rodrigues. Há muito tempo o Brasil não produz jornalistas como Claudio Abramo, e mesmo repórteres como Rubem Braga e Joel Silveira. Há muito tempo…
Os derradeiros, notáveis intérpretes da cultura brasileira já passaram dos 60 anos, quando não dos 70, como Alfredo Bosi ou Ariano Suassuna ou Paulo Mendes da Rocha. Sobra no mais um deserto de oásis raros e até inesperados. Como o filme O Som ao Redor, de Kleber Mendonça, que acaba de ser lançado, para os nossos encantos e surpresa.
Nos últimos dez anos o País experimentou inegáveis progressos econômicos e sociais, e a história ensina que estes, quando ocorrem, costumam coincidir com avanços culturais. Vale sublinhar, está claro, que o novo consumidor não adquire automaticamente a consciência da cidadania. Houve, de resto, e por exemplo, progressos em termos de educação, de ensino público? Muito pelo contrário.
E houve, decerto, algo pior, o esforço concentrado dos senhores da casa-grande no sentido de manter a maioria no limbo, caso não fosse possível segurá-la debaixo do tacão. Neste nosso limbo terrestre a ignorância é comum a todos, mas, obviamente, o poder pertence a poucos, certos de que lhes cabe por direito divino. Indispensável à tarefa, a contribuição do mais afiado instrumento à disposição, a mídia nativa. Não é que não tenha servido ao poder desde sempre. No entanto, nas últimas décadas cumpriu seu papel destrutivo com truculência nunca dantes navegada.
Falemos, contudo, de amenidades do vídeo. De saída, para encaminhar a conversa. Falemos do Big Brother Brasil, das lutas do MMA e do UFC, dos programas de auditório, de toda uma produção destinada a educar o povo brasileiro, sem falar das telenovelas, de hábito empenhadas em mostrar uma sociedade inexistente, integrada por seres sem sombra. Deste ponto de vista, a Globo tem sido de uma eficácia insuperável.
O espetáculo de vulgaridade e ignorância oferecido no vídeo não tem similares mundo afora, enquanto eu me colho a recordar os programas de rádio que ouvia, adolescente, graciosas, adoráveis peças de museu como a PRK30, ou anos verdolengos habitados pelos magistrais shows de Chico Anysio. Cito exemplos, mas há outros. Creio que a Globo ocupe a vanguarda desta operação de imbecilização coletiva, de espectro infindo, na sua capacidade de incluir a todos, do primeiro ao último andar da escada social.
O trabalho da imprensa é mais sutil, pontiagudo como o buril do ourives. Visa à minoria, além dos donos do poder real, que, além do mais, ditam o pensamento único, fixam-lhe os limites e determinam suas formas de expressão. O alvo é a chamada classe média alta, os aspirantes, a segunda turma da classe A, o creme que não chegou ao creme do creme. E classe B também. Leitores, em primeiro lugar, dos editoriais e colunas destacadas dos jornalões, e da Veja, a inefável semanal da Editora Abril. Alguns remediados entram na dança, precipitados na exibição, de verdade inadequada para eles.
Aqui está a bucha do canhão midiático. Em geral, fiéis da casa-grande encarada como meta de chegada radiosa, mesmo quando ancorada, em termos paulistanos, às margens do Rio Pinheiros, o formidável esgoto ao ar livre. E, em geral, inabilitados ao exercício do espírito crítico. Quem ainda o pratica, passa de espanto a espanto, e o maior, se admissível a classificação, é que os próprios editorialistas, colunistas, articulistas etc. etc. acabem por acreditar nos enredos ficcionais tecidos por eles próprios, quando não nas mentiras assacadas com heroica impavidez.
O deserto cultural em que vivemos tem largas e evidentes explicações, entre elas, a lassidão de quem teria condições de resistir. Agrada-me, de todo modo, o relativo otimismo de Alfredo Bosi, que enriquece esta edição. Mesmo em épocas medíocres pode medrar o gênio, diz ele, ainda que isto me lembre a Península Ibérica, terra de grandes personagens solitárias em lugar de escolas do saber. Um músico e poeta italiano do século passado, Fabrizio de André, cantou: “Nada nasce dos diamantes, do estrume nascem as flores”. E do deserto?
Mino Carta
No Carta Capital

Poema/Música "MIÚDO DA RUA."

Letra : Jorge Ataíde

Calção roto, camisa suja
Olhar maroto e fugindo à rusga
Rouba o que ver e o que pode tirar
Não escreve , não lê , não sabe chorar

Miúdo da rua sem eira nem beira
com tecto de lua, sem cama nem esteira
Miúdo da rua, nascido do vento
verdade tão nua, produto do tempo

Andar traquina, descalço e só 
Senta-se a  esquina, até mete dó
Não tem o carinho dum pai, duma mãe
Bebe copos de vinho e sente-se alguém

Coragem não falta pro mundo encarar
Corre e salta sem nunca parar
O dia que vem vai-se repetir
Não sonha não tem direito a sorrir

A urgência do ensino médio. Por Mozart Neves Ramos


A urgência do ensino médio

MOZART NEVES RAMOS – Membro do Conselho de Governança do Todos Pela Educação e do Conselho Nacional de Educação, e professor da UFPE.

No início da gestão do ministro da Educação, Aloizio Mercadante, uma importante decisão foi tomada: o Brasil precisa fechar de vez a “torneira” do analfabetismo. É preciso que todas  as crianças estejam alfabetizaas pelo menos até os oito anos de idade. O secretário de Educação Básica, Cesar Callegari, não perdeu tempo e saiu a campo: trouxe todos os atores diretamente envolvidos com essa etapa educacional, especialmente a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), e elaborou um programa de alfabetização que inclui formação docente, material didático de boa qualidade e avaliação. Em menos  de um ano, o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (Pnaic) foi estruturado e em breve será lançado oficialmente. Esse é um exemplo de convicção, decisão política, coragem e investimento direcionado para uma etapa tão importante.
Na outra ponta da educação básica está o ensino médio, com diversos problemas que desencadeiam baixos indicadores de aprendizagem. Esses problemas não são de hoje, já vêm de longe, e seus efeitos começam a se tornar mais nítidos agora. Sem resolvê-los, o país não atingirá uma das metas do novo Plano Nacional de Educação (PNE): o de elevar a 33% o percentual de jovens de 18 a 24 anos no ensino superior. Vale lembrar que essa já era a meta do PNE que se concluiu em 2010. Nem sequer nos aproximamos desse percentual ao seu término, chegando a apenas 14,6%.
De antemão, sabemos que essa será uma das metas mais desafiadoras do plano , em função da crise que o ensino médio vem enfrentando. Faltam professores, um currículo atraente e escola de tempo integral. Enquanto isso, o Ministério da Educação e os secretários estaduais de Educação não se entendem. A conseqüência desse descompasso em relação ao ensino médio pode afetar diretamente o crescimento do país, que vive hoje uma boa onda econômica.
Ou o Brasil forma bem os jovens de agora ou não teremos quem sustente a sua economia num futuro próximo. Faltará ─ o que já se vem observando nos mercados internos em expansão ─ mão de obra qualificada para atender as demandas. O Brasil terá que importá-la, enquanto os nossos jovens ficarão à margem do processo produtivo.
Para tentar ajudar a resolver o problema da mão de obra qualificada , as empresas e o Sistema S (Senai, Senac, Sesi, Sebrae e outros) começam a investir fortemente no aumento de escolaridade de seus trabalhadores, tal como vem fazendo o  Sesi/SC. Essas iniciativas vêm contribuindo para a redução da desigualdade de renda. Números do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) revelam que o aumento da escolarização da mão de obra fez cair a diferença  salarial entre os que têm menos e mais instrução. Uma das conseqüências foi que o índice de Gini   ─ indicador que mede a distribuição de renda ─ baixou de 0,552 em 2001 para 0,485 em 2011. Pela primeira vez, ficou abaixo de 0,5 ─ e quanto mais próximo de zero, melhor a distribuição de renda.
Mas muito do que se investe hoje em educação é para tapar o buraco deixado pela baixa qualidade do ensino oferecido. Uma situação análoga à da formação continuada de professores, que deveria ser uma atualização e uma nova qualificação, e não uma formação complementar à inicial, como acontece.
O Brasil precisa resolver o problema do ensino médio. Não há mais tempo. Um país que quer ser protagonista num cenário mundial competitivo não pode se acomodar com uma geração nem-nem ─ jovens que nem trabalham nem estudam. Segundo estudo do Senai, o país tem hoje 5,3 milhões de brasileiros  entre 18 e 25 anos que estão excluídos do mercado de trabalho e do ensino formal. Para esses sobram profissões de baixa remuneração, que não exigem o ensino médio. Ocorre que nos tempos, com mudanças tecnológicas tão intensas, as mudanças estruturais são cada vez mais rápidas nos meios de produção. Assim, em médio prazo, esses trabalhadores precisarão de maior escolarização, seja para aperfeiçoar a educação num curso universitário, seja para fazer um curso profissionalizante.
Nos pais há alguns poucos modelos, já em escala razoável, de bons programas de ensino médio, a exemplo das Escolas de Referência de Tempo Integral, em Pernambuco. Porém, diferentemente do pacto nacional que vem se estabelecendo pela alfabetização de crianças na idade certa, para melhorar o ensino médio, ainda faltam entendimento, cooperação, humildade e investimentos. É preciso estabelecer também um pacto pelo ensino médio, e o mais rápido possível!   

fonte:Correio Braziliense. quinta-feira, 1º de Novembro de 2012. OPINIÃO, p.17 

Lampião é macho, macho por despacho.


Difícil saber o feminino do cangaceiro Lampião. Será Lampiã? Lampioa? Ou será Lamparina? Existe o feminino de Lampião? Difícil saber, mortalmente difícil. E muito perigoso. Se especularmos por essa vereda escorregadia, alguém poderá se abespinhar e dizer que está em curso uma heresia contra o legado másculo do legendário bandido. Portanto, não lhe duvidamos da masculinidade. Fica decidido que Lampião não tem feminino, é macheza pura.
Mesmo assim, mesmo afirmando a macheza, temos aqui um problema de gênero. Não um problema do homem chamado Lampião, por favor, que este se encontra acima das suspeitas. Nosso problema de gênero diz respeito ao vernáculo: nem todos os substantivos, infelizmente, são do gênero masculino, de sorte que fica inviável defender a macheza do Rei do Cangaço sem o auxílio de palavras femininas. Macheza é substantivo feminino. Virilidade também é palavra fêmea. Hombridade, valentia, todos vocábulos femininos. Vai soar como provocação, mas a língua embaralha o feminino e o masculino, a maldita. Fazer o quê? Talvez ela não esteja à altura de descrever o destemido cangaceiro, encarnado pelo pernambucano Virgulino Ferreira da Silva (1898-1938). Ele, sim, não tinha nada que fosse emasculado; não há de ter tido, nunca, jamais, uma “porção mulher”, para adotar aqui a expressão consagrada pelo cancioneiro.
E que ninguém discuta. Cumpra-se. Foi assim que a Justiça decidiu. Foi assim que despachou o juiz Aldo Albuquerque, da 7ª Vara Cível de Aracaju, Sergipe, há pouco mais de uma semana, ao proibir a publicação e a comercialização do livro Lampião ─ o Mata Sete, de autoria de Pedro de Morais, em atendimento ao pedido da família do temível Virgulino. A família se declarou ofendida porque, na obra, Virgulino aparece como homossexual. Não é só. Ele teria sido um marido traído, uma vez que sua companheira, Maria Bonita, teria sucumbido ao adultério nos braços de um sujeito do mesmo bando, de nome Luiz Pedro. E mais: com suas perneiras de couro enfeitado, seu paletó azul e sua testeira salpicada de medalhinhas, o próprio Virgulino caiu de amores pelo mesmo Luiz Pedro.
Aí também não dá, reclamaram em juízo os descendentes. Os historiadores podem dizer à vontade que Lampião estuprava garotas indefesas, que lhes marcava o rosto com ferro quente, que sangrava lentamente os desafetos, cravando-lhes o punhal entre a clavícula e o pescoço. Podem dizer que ele castrava seus reféns, que arrancava olhos, línguas e orelhas. Até aí, não se vê ofensa nenhuma. Mas essa conversa de triângulo amoroso com pitadas homoeróticas, essa sim, ultraja a honra familiar. Por isso, os familiares pleitearam a censura, que chegou veloz e escura, feito uma peixeira noturna.
O episódio parece uma crônica dos costumes, mas é sério. Embora o processo ainda admita recursos ─ a proibição do livro já começou a ser contestada na semana que passou─, o que temos aí não é uma peça meramente cômica, mas um caso de veto à expressão do pensamento. Sem trocadilho, esse veto ao pensamento deveria nos fazer pensar um pouco mais. De que honra, afinal, nós estamos falando aqui? Há tempos, na canção “Pecado original”, Caetano Veloso cravou uma de suas boas verdades: A gente não sabe o lugar certo de colocar o desejo. Pois será que sabemos o lugar certo de colocar a honra?
Eis aí outra indagação difícil, moralmente difícil, além de muito perigosa. Esse conceito, o do macho viril, guarda um quê de animalesco, de irracional, de selvagem. Se macho, se incontestavelmente macho, o Rei do Cangaço teria um licença para aterrorizar os humildes com suas brutalidades de facínora. Ele teria sido apenas mais macho que  os demais , só isso. Daí que, ele que viveu como fora da lei, tem agora, depois da morte, a sua macheza ─ vai no feminino mesmo─ tutelada pela própria Justiça. Ele pode ser chamado de homicida e de ladrão, tudo bem. Não de marido traído. Nem de homossexual.
Esse moral polar, “monopolar”, esquarteja tudo o que seja ambíguo. E, no vasto mundo dos amores, o humano não é acima de tudo um forte, mas acima de tudo ambíguo, como a própria língua. Por isso, essa moral monopolar é desumana. Ela não sabe que, como o Diadorim de Guimarães Rosa, o jagunço valente, como Riobaldo, pode amá-lo sem entender porque ama, e suspirar, perdido: “Diadorim é minha neblina”. O mito sem neblina de Lampião é um tributo à intolerância.

Eugênio Bucci é jornalista e professor da ESPM e da ECA- USP
Fonte Revista Época nº 707 de 5 de dezembro de 2011  

Monteiro Lobato no Supremo Tribunal Federal


Monteiro Lobato no Supremo Tribunal Federal

Passei boa parte da minha infância e adolescência lendo Monteiro Lobato. Primeiro,  As reinações de narizinho, Viagem ao céu, O pica-pau amarelo, O Saci, O marquês de rabicó. Mais tarde, encantei-me com os contos de Urupês e Cidades mortas. Conheci um pouco da mitologia grega com o Minotauro e com Os doze trabalhos de Hércules; aprendi históra no inesquecível História do mundo para crianças.
Do autor, além da grandiosa obra, ressalta-se o homem idealista e sonhador, à frente do seu tempo. Nacionalista e sonhador, à frente do seu tempo. Nacionalista, afrontou o Estado Novo ao lutar pelo petróleo brasileiro, causa que lhe custou a perda dos seus bens e a prisão. Intelectual, não só defendeu a produção e impressão de livros no Brasil, como trouxe para literatura infantil toda a riqueza do nosso folclore, com as suas cucas, cupiras, mulas sem cabeça e o Saci-Pererê.
As crianças de hoje sonham em viajar para a Disneyworld ou para o mundo encantado e estrangeiro de Nárnia e Harry Potter. As crianças de ontem sonhavam em ir ao mágico Sítio do Picapau amarelo para ouvir as estórias de Dona Benta, brinca com a boneca Emília e saborear os quitutes da tia Anastásia.
Por isso causou-me certo desconforto a  notícia sobre a interposição de mandato de segurança no Supremo Tribunal Federal, no qual o Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (Iara) pede a anulação de um parecer do Conselho Nacional de Educação que liberou a adoção, nas escolas públicas, do livro Caçadas de Pedrinho. Para o Iara, a estória contém trechos racistas envolvendo a personagem Tia Anastácia, cuja cor negra é mencionada de forma pejorativa pelo autor. Num trecho, a personagem Emília refere-se ao iminente ataque de onças e animais ferozes ao sítio: Não vai escapar ninguém ─ nem Tia Nastácia, que tem carne preta. Em  outro trecho, Anastácia sobe num mastro para fugir das onças. A cena é descrita assim por Monteiro Lobato: Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos , trepou que nem uma macaca de carvão.
De fato, a leitura do trecho, escrito há quase 80 anos ( o livro foi publicado em 1933) é mesmo chocante. Como também o é ler em Memórias Póstumas de Brás Cubas, clássico da literatura brasileira pela cena de ninguém menos que Machado de Assis, que o personagem, quando criança, quebrara a cabeça de uma escrava, por que lhe negara uma colher do doce de coco que estava fazendo. Ou então quando ele se refere a Prudêncio, moleque de casa: era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia─ algumas vezes gemendo, mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito , uma “ai, nhonhô!”
Procurei, no fundo da minha memória, que impressão me ficara, da leitura de Lobato e Machado, de Tia Anastácia ou de Brás Cubas. Da primeira , restou-me a imagem de uma senhora de cor negra , bonachona, que fazia doces e bolos deliciosos, amorosa com as crianças e adorada por elas. De Brás Cubas ficou o retrato de um jovem fútil, cheio de caprichos, com ares da Europa, cujo comportamento é a face caricata da sociedade brasileira burguesa dos século 19.
As expressões inadequadas contidas em ambas as obras, como em várias outras, não sei se por conta de uma peculiar sabedoria das crianças, que absorve apenas o melhor  das estórias, não fazem  parte das minhas lembranças. Certamente porque tenha entendido , no decorrer do processo de aprendizagem, a necessidade de se exercer juízo crítico sobre todas as nossas leituras. Não fosse assim, como superar a crueldade absurda contida nas estórias infantis que se tornaram Chapeuzinho Vermelho, Branca de Neve e o Pequeno Polegar?
Oxalá a audiência pública, tão sabiamente convocada pelo ministro Luiz Fux para que as partes envolvidas nessa celeuma cheguem a um consenso, possa dar frutos outros, que não a proibição de leitura das deleitosas aventuras de Pedrinho, Narizinho e Emília no Sítio do Picapau Amarelo. Todo artista, assim como todo escritor, é fruto do seu tempo e os seus escritos não podem ser lidos fora do contexto. Censurar Monteiro Lobato, cuja obra literária infantil ainda não foi superada por nenhum outro escritor de língua portuguesa, implica o dever de também passar um pente fino em toda a literatura brasileira do século 19 e até pelo menos a metade do século 20. Em outras palavras, uma tremenda burrice.

MÔNICA SIFUENTES- Desembargadora do TRF 1ª REGIÃO

fonte? Correio Braziliense, domingo, 7 de outubro de 2012.

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