*Por
Vladimir Carvalho. Professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)
Surpreende-nos,
mais uma vez, Ariano Suassuna depois do interregno que foi a sua exitosa e
longa cruzada com as aulas-espetáculo, que divertiu e mobilizou o país de Norte
a Sul ̶̶
e da publicação póstuma do prometido Romance
de Dom Pantero no palco dos pecadores (2017) ̶ com
a descoberta recente deste “novo” rebento de sua lavra, O sedutor do sertão, que, só recentemente, veio a lume em
requintada brochura também da Editora Nova Fronteira. É o resultado de
providencial descida aos baús do grande criador, realizada com o aval do
condomínio de herdeiros de Ariano pelo crítico e professor Carlos Newton
Júnior, que também é o autor de judiciosa e brilhante apresentação do volume.
A
obra faz jus, como era de esperar, à descomunal imaginação criadora do autor de
A Compadecida, de uma infinita
capacidade de absorver o espírito das fábulas do romanceiro popular nordestino,
de onde saltam luminosas a astúcia e a graça do sertanejo na luta tenaz para
sobreviver. Mas, de uma forma tão candente que a transposição eleva e sublima a
ação dos personagens, tal como vemos em seu teatro e também em seus romances
encabeçados, sobretudo, por A pedra do reino,
que já nasceu clássico. O que nos faz rir e pensar, simultaneamente.
Quem
se divertiu com as proezas de João Grilo e Chicó naquela peça, inclusive na
versão para o cinema, vai se fartar de rir com as rocambolescas aventuras
pícaras do impagável Malaquias Pavão, o tal sedutor, “aguardanteiro, conquistador,
folheteiro e cambiteiro”, imbatível rei da simpatia nas relações com outros
homens ou com mulherio de maneira geral. Aliás, o livro pode ser, pelo humor
contagiante, um bálsamo que nos vem socorrer bem a propósito nesta quadra de
tão penosa travessia em vista do novo coronavírus.
A
prosopopeia desse sujeito estradeiro, capaz de enganar até o diabo, passa-se
nas terras que vão do sertão ao brejo, na Paraíba, típicas paisagens no
Nordeste, lembrando, em muito, e guardadas as proporções, os lances da
cavalaria decadente de Dom Quixote, de
Cervantes, uma das inegáveis influências de Suassuna.
Não
à toa, Pavão faz-se acompanhar de seu fiel estribeiro, Miguel Biônico, “baixo,
careca, meio estrábico”, para cuidar do cavalo Rei de Ouro. Isso tudo em pleno
cenário e no desenrolar da Revolta de Princesa, uma briga entre o coronel Zé
Pereira e o presidente (como eram chamados à época os governadores) João
Pessoa, que se antecipou à Revolução de 30, deflagrada a partir da morte deste
último.
É
essa peça rara que tenho sob os olhos, porém, na forma original, um manuscrito
datilografado em tipos hoje borrados, sob o amarelo que a passagem do tempo
marcou. Guardo-o como preciosa relíquia em meus arquivos porque foi meu
passado, em 1969, por Marcus Odilon Ribeiro, dublê de escritor e usineiro,
amigo dileto, que pretendia transformá-lo num roteiro cinematográfico e
produzir o filme dele resultante. Com o passar do tempo, o projeto foi sendo
adiado e terminou por ser esquecido no longo período de vacas magras para o
cinema brasileiro.
Não
obstante, A Compadecida, a obra maior de Suassuna no teatro ter sido
adaptada para o cinema pelo húngaro
Georges Jonas (1969), que fez fortuna como publicitário em São Paulo, não obteve o êxito esperado. O
gringo era incapaz de perceber o mínimo que fosse da cultura brasileira em
geral, quanto mais da cultura nordestina. Mais fácil seria o mar secar ou uma
baleia emergir das parcas águas de um açude no sertão. Outra versão, mais bem
resolvida, foi a de Roberto Faria (1987), talvez o maior diretor-artesão do
cinema, no que pese o caráter estritamente circense que emprestou á realização
protagonizada pelos trapalhões e conquistando grande parte do público.
Entretanto,
o sucesso mais retumbante viria pelas mãos de Guel Arrais (2000), tanto no
cinema quanto na televisão, Senhor absoluto do tema, o pernambucano soube
captar a essência dramatúrgica, o humor e o espírito universal do texto.
Afinal, o nosso Ariano foi mestre dos mestres no seu ofício, como prova a
genialidade deste O Sedutor do sertão
agora disponível. Não existe em nossa cultura dois Arianos Suassuna. Quem
inventou o primeiro perdeu ou esqueceu a fórmula mágica.
Publicado no Correio Braziliense de 31 de agosto de 2020, Caderno Opinião, p.9