Um velório singular. Por Márico Cotrim



Há tempos reencontrei meu prezado Edeson Coelho, veterano publicitário e uma das mais alegres e inteligentes figuras deste fantástico país que habitamos. A conversa, deliciosa, levou tempo. Impossível resistir ao bom astral que Edeson emana por todos os poros.
Entre uma risada e outra que alimentava o papo, falamos de coisas e loisas de nosso convívio de tantos anos, da patética-hilariante realidade que nos cerca. Ele recordou, com sua graça habitual, uma antiga história quase tão Kafkiana quanto as que temos acompanhando pela mídia todo santo dia. Vale contá-la.
Imagine você que, nos remotos tempos de minha passagem pelo BB, estava o nosso Edeson fazendo um curso de extensão nos Estados Unidos, em companhia de outros profissionais do ramo da comunicação social.
As aulas corriam bem, logo os alunos se enturmaram em boa camaradagem, quando aconteceu a tragédia: subitamente, um dos colegas morreu fulminado por um enfarte, deixando todo o grupo desolado, particularmente o Edeson, que já tornara seu amigo do peito.
Ao saber da triste notícia, ele se informou dos detalhes do enterro e, na manhã seguinte, bem cedinho, foi ao cemitério para participar do velório.
Quando, às sete horas, chegou à capela, levou enormíssimo susto. No recinto não havia ninguém além do morto. Surpreso, mas sem ter coisa melhor para fazer. Edeson ficou por ali zanzando. Dava uma olhadinha no corpo do amigo, caminhava para cá e para lá e ninguém chegava.
Coisa estranha, aquela. Chegou a imaginar que alguns americanos mais desalmados teriam o costume de não se despedir de quem havia partido desta para melhor.
Não, claro que não. Com certeza deveria haver algum imprevisto, logo a família e os amigos chegariam para chorar o falecido. Só que o tempo ia passando e ninguém, rigorosamente ninguém chegava.
Nosso irrequieto Edeson, sem objetivo, olhava para o teto e para as paredes. Em determinado momento, chamou-lhe a atenção na parede. Curioso e sem outra alternativa para passar o tempo, apertou-lhe.
Então, o impossível aconteceu.
Para sua estupefação esse botão acionava a cremação do cadáver! Imediatamente, o caixão começou a mover-se, deslizando sobre trilhos insuspeitados a caminho da fornalha que já se abria aos olhos atônitos de Edeson Coelho.
Ele ainda tentou agarrar o caixão, pará-lo, estancar sua marcha, mas o mecanismo de cremação era inexorável.
Em meio a seu esforço sobre-humano, Edeson concluiu que, caso insistisse, acabaria, ele próprio indo junto com o amigo para a fornalha e para o além, seria queimado vivo! Melhor resistir, e foi o que fez.
Em questão de minutos, viu-se sozinho, sem cadáver, com cara de besta e num velório sem de cujus! Que fazer?
Apreensivo com a iminente chegada das pessoas que fatalmente viriam, só  lhe restou a mais ignóbil das saídas: fugir, fugir rápido e desabaladamente daquele lugar – e sem olhar para trás. Seria difícil explicar o inexplicável!
Segundo ele, o assunto virou notícia, correu o país e durante muitos anos Edeson manteve silêncio tumular sobre o esdrúxulo episódio. Só ele, caladinho da silva, sabia o que acontecera naquela manhã, mas, obviamente, não abriria o bico para ninguém. Só recentemente Edeson revelou o fato, mas já sem qualquer risco. E, que diabo, não cometera crime algum, só fizera uma grande lambança.
Só restou um gostoso resto de chope noie adentro...
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Fonte: Correio Braziliense, 15 de outubro de 2016.  Caderno Diversão e Arte, p. 7.  Coluna Márcio Cotrim. www.marciocotrim.com.br; marciocontrim@facbrasil.org.br

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