Poema RECEITUÁRIO.

Receituário
De que fel preparava
as porções que servia?
O papel que rasgava
era eu que escrevia?
De que erva era o chá
que o bule fervia?
De que águas o mar
que cortava de fria?
De que sal o tempero
que azedava o meu dia?
De que fogo o luar
que furioso latia?
De que medos a tarde
mastigava e mordia?
De que arte marcial
o furor apreendia?
De que livro infernal
as lições consumia?
De que bem, de que mal
se chorava, se ria?
De que torvo quintal
suas flores colhia?

Reynaldo Jardim
Publicado no jornal Correio Braziliense em 22 de dezembro de 2016. Caderno Diversão e Arte. Coluna Tantas Palavras, por José Carlos Vieira.

A arte de fazer crônicas. Por Arnaldo Niskier*



 "A crônica não é, portanto, apenas filha do jornal. Trata-se do antídoto que o próprio jornal produz. Só nele pode sobreviver, porque se nutre exatamente do caráter antiliterário do jornalismo diário."



O Rio de Janeiro ganhou novo evento para celebrar literatura. O Salão Carioca do Livro (LER), com o apoio da Fundação Cesgranrio, realizado no Pier Mauá, ocupou com sucesso a região do Boulevard Olímpico. Com acesso gratuito ao público, a programação celebrou a literatura em toda a sua diversidade. Coube a mim falar sobre “A arte de escrever crônicas”.
“A crônica não é um gênero maior”. Já escreveu Antônio Cândido. Graças a Deus, completou o próprio crítico, porque, “sendo assim ela fica perto de nós”. Na sua despretensão, humaniza. Fruto do jornal, onde aparece entre notícias efêmeras, a crônica é um gênero literário que se caracteriza por estar perto do dia a dia, seja  nos temas, ligados à vida cotidiana, seja na linguagem despojada e coloquial do jornalismo. Mais do que isso, surge inesperadamente, como um instante de alívio para o leitor fatigado com a frieza da objetividade jornalística.
De extensão limitada, essa pausa se caracteriza exatamente por ir contra as tendências fundamentais do meio em que aparece  ̶  o jornal diário. Se a notícia deve ser sempre objetiva e impessoal, a crônica é subjetiva e pessoal. Se o jornal é frio, na crônica estabelece-se uma atmosfera de intimidade entre o leitor e o cronista, que refere experiências pessoais ou expende juízos originais acerca dos fatos versados. A crônica não é, portanto, apenas filha do jornal. Trata-se do antídoto que o próprio jornal produz. Só nele pode sobreviver, porque se nutre exatamente do caráter antiliterário do jornalismo diário.
O leitor pressuposto da crônica é urbano e, em princípio, um leitor de jornal ou de revista. A preocupação com esse leitor é que faz com que, entre os assuntos tratados, o cronista dê maior atenção aos problemas do modo de vida urbano, do mundo contemporâneo, dos pequenos acontecimentos do dia a dia comuns nas grandes cidades. Por esse motivo, é uma leitura agradável, pois o leitor interage com os acontecimentos e, por muitas vezes, se identifica com as ações tomadas pelas personagens.
Trata-se de uma leitura que nos envolve, uma vez que utiliza a primeira pessoa, aproximando o autor de quem lê. Como se estivesse em uma conversa informal, o cronista tende a dialogar sobre fatos, às vezes até mesmo íntimos com o leitor. Como o que podemos observar, ultimamente, nas crônicas do meu colega Acadêmico Zuenir Ventura, ou do célebre cronista Luiz Fernando Veríssimo, do jornal O Globo, nas quais eles citam as netas corriqueiramente. Quem nunca ouviu falar em Alice ou Lucinda (netas de ambos, respectivamente)?
Nas crônicas de grandes escritores, podemos verificar a exploração incansável das potencialidades da língua. Manipulando recursos estilísticos e truques de ficção, os textos breves alcançam os afetos de quem os lê, trabalhando como um espião que nos passa o segredo da existência numa mensagem codificada – que é, sem dúvida, literatura.
Rubem Braga é um caso único de autor que entrou para nossa história literária exclusivamente pela sua obra de cronista. Com uma visão entre lírica e irônica da vida, e um estilo pessoal, ele conseguiu, como ninguém, dar nobreza literária ao gênero, que passou a ser tratado em condições quase iguais ao seu irmão mais elevado, o conto. Junto com Rubem Braga, na época áurea da revista Manchete, não posso deixar de citar outros nomes célebres, que alavancavam as vendas da revista com seus textos brilhantes: Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino e Henrique Pongetti, que assinou por trinta anos uma coluna com uma crônica diária no jornal O Globo. Além desse quarteto, outro exemplar de texto impecável entramos nos escritos de Carlos Heitor Cony, meu colega acadêmico, que considero nosso melhor escritor, atualmente. 

*Membro da Academia Brasileira de Letras, professor Honoris Causa da Unicarioca, e presidente do Ciee/ Rio.


Publicado no Correio Braziliense, de 19 de dezembro de 2016. Caderno Opinião, p. 9.
 

Um velório singular. Por Márico Cotrim



Há tempos reencontrei meu prezado Edeson Coelho, veterano publicitário e uma das mais alegres e inteligentes figuras deste fantástico país que habitamos. A conversa, deliciosa, levou tempo. Impossível resistir ao bom astral que Edeson emana por todos os poros.
Entre uma risada e outra que alimentava o papo, falamos de coisas e loisas de nosso convívio de tantos anos, da patética-hilariante realidade que nos cerca. Ele recordou, com sua graça habitual, uma antiga história quase tão Kafkiana quanto as que temos acompanhando pela mídia todo santo dia. Vale contá-la.
Imagine você que, nos remotos tempos de minha passagem pelo BB, estava o nosso Edeson fazendo um curso de extensão nos Estados Unidos, em companhia de outros profissionais do ramo da comunicação social.
As aulas corriam bem, logo os alunos se enturmaram em boa camaradagem, quando aconteceu a tragédia: subitamente, um dos colegas morreu fulminado por um enfarte, deixando todo o grupo desolado, particularmente o Edeson, que já tornara seu amigo do peito.
Ao saber da triste notícia, ele se informou dos detalhes do enterro e, na manhã seguinte, bem cedinho, foi ao cemitério para participar do velório.
Quando, às sete horas, chegou à capela, levou enormíssimo susto. No recinto não havia ninguém além do morto. Surpreso, mas sem ter coisa melhor para fazer. Edeson ficou por ali zanzando. Dava uma olhadinha no corpo do amigo, caminhava para cá e para lá e ninguém chegava.
Coisa estranha, aquela. Chegou a imaginar que alguns americanos mais desalmados teriam o costume de não se despedir de quem havia partido desta para melhor.
Não, claro que não. Com certeza deveria haver algum imprevisto, logo a família e os amigos chegariam para chorar o falecido. Só que o tempo ia passando e ninguém, rigorosamente ninguém chegava.
Nosso irrequieto Edeson, sem objetivo, olhava para o teto e para as paredes. Em determinado momento, chamou-lhe a atenção na parede. Curioso e sem outra alternativa para passar o tempo, apertou-lhe.
Então, o impossível aconteceu.
Para sua estupefação esse botão acionava a cremação do cadáver! Imediatamente, o caixão começou a mover-se, deslizando sobre trilhos insuspeitados a caminho da fornalha que já se abria aos olhos atônitos de Edeson Coelho.
Ele ainda tentou agarrar o caixão, pará-lo, estancar sua marcha, mas o mecanismo de cremação era inexorável.
Em meio a seu esforço sobre-humano, Edeson concluiu que, caso insistisse, acabaria, ele próprio indo junto com o amigo para a fornalha e para o além, seria queimado vivo! Melhor resistir, e foi o que fez.
Em questão de minutos, viu-se sozinho, sem cadáver, com cara de besta e num velório sem de cujus! Que fazer?
Apreensivo com a iminente chegada das pessoas que fatalmente viriam, só  lhe restou a mais ignóbil das saídas: fugir, fugir rápido e desabaladamente daquele lugar – e sem olhar para trás. Seria difícil explicar o inexplicável!
Segundo ele, o assunto virou notícia, correu o país e durante muitos anos Edeson manteve silêncio tumular sobre o esdrúxulo episódio. Só ele, caladinho da silva, sabia o que acontecera naquela manhã, mas, obviamente, não abriria o bico para ninguém. Só recentemente Edeson revelou o fato, mas já sem qualquer risco. E, que diabo, não cometera crime algum, só fizera uma grande lambança.
Só restou um gostoso resto de chope noie adentro...
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Fonte: Correio Braziliense, 15 de outubro de 2016.  Caderno Diversão e Arte, p. 7.  Coluna Márcio Cotrim. www.marciocotrim.com.br; marciocontrim@facbrasil.org.br

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