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A arte de fazer crônicas. Por Arnaldo Niskier*



 "A crônica não é, portanto, apenas filha do jornal. Trata-se do antídoto que o próprio jornal produz. Só nele pode sobreviver, porque se nutre exatamente do caráter antiliterário do jornalismo diário."



O Rio de Janeiro ganhou novo evento para celebrar literatura. O Salão Carioca do Livro (LER), com o apoio da Fundação Cesgranrio, realizado no Pier Mauá, ocupou com sucesso a região do Boulevard Olímpico. Com acesso gratuito ao público, a programação celebrou a literatura em toda a sua diversidade. Coube a mim falar sobre “A arte de escrever crônicas”.
“A crônica não é um gênero maior”. Já escreveu Antônio Cândido. Graças a Deus, completou o próprio crítico, porque, “sendo assim ela fica perto de nós”. Na sua despretensão, humaniza. Fruto do jornal, onde aparece entre notícias efêmeras, a crônica é um gênero literário que se caracteriza por estar perto do dia a dia, seja  nos temas, ligados à vida cotidiana, seja na linguagem despojada e coloquial do jornalismo. Mais do que isso, surge inesperadamente, como um instante de alívio para o leitor fatigado com a frieza da objetividade jornalística.
De extensão limitada, essa pausa se caracteriza exatamente por ir contra as tendências fundamentais do meio em que aparece  ̶  o jornal diário. Se a notícia deve ser sempre objetiva e impessoal, a crônica é subjetiva e pessoal. Se o jornal é frio, na crônica estabelece-se uma atmosfera de intimidade entre o leitor e o cronista, que refere experiências pessoais ou expende juízos originais acerca dos fatos versados. A crônica não é, portanto, apenas filha do jornal. Trata-se do antídoto que o próprio jornal produz. Só nele pode sobreviver, porque se nutre exatamente do caráter antiliterário do jornalismo diário.
O leitor pressuposto da crônica é urbano e, em princípio, um leitor de jornal ou de revista. A preocupação com esse leitor é que faz com que, entre os assuntos tratados, o cronista dê maior atenção aos problemas do modo de vida urbano, do mundo contemporâneo, dos pequenos acontecimentos do dia a dia comuns nas grandes cidades. Por esse motivo, é uma leitura agradável, pois o leitor interage com os acontecimentos e, por muitas vezes, se identifica com as ações tomadas pelas personagens.
Trata-se de uma leitura que nos envolve, uma vez que utiliza a primeira pessoa, aproximando o autor de quem lê. Como se estivesse em uma conversa informal, o cronista tende a dialogar sobre fatos, às vezes até mesmo íntimos com o leitor. Como o que podemos observar, ultimamente, nas crônicas do meu colega Acadêmico Zuenir Ventura, ou do célebre cronista Luiz Fernando Veríssimo, do jornal O Globo, nas quais eles citam as netas corriqueiramente. Quem nunca ouviu falar em Alice ou Lucinda (netas de ambos, respectivamente)?
Nas crônicas de grandes escritores, podemos verificar a exploração incansável das potencialidades da língua. Manipulando recursos estilísticos e truques de ficção, os textos breves alcançam os afetos de quem os lê, trabalhando como um espião que nos passa o segredo da existência numa mensagem codificada – que é, sem dúvida, literatura.
Rubem Braga é um caso único de autor que entrou para nossa história literária exclusivamente pela sua obra de cronista. Com uma visão entre lírica e irônica da vida, e um estilo pessoal, ele conseguiu, como ninguém, dar nobreza literária ao gênero, que passou a ser tratado em condições quase iguais ao seu irmão mais elevado, o conto. Junto com Rubem Braga, na época áurea da revista Manchete, não posso deixar de citar outros nomes célebres, que alavancavam as vendas da revista com seus textos brilhantes: Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino e Henrique Pongetti, que assinou por trinta anos uma coluna com uma crônica diária no jornal O Globo. Além desse quarteto, outro exemplar de texto impecável entramos nos escritos de Carlos Heitor Cony, meu colega acadêmico, que considero nosso melhor escritor, atualmente. 

*Membro da Academia Brasileira de Letras, professor Honoris Causa da Unicarioca, e presidente do Ciee/ Rio.


Publicado no Correio Braziliense, de 19 de dezembro de 2016. Caderno Opinião, p. 9.
 

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