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Rios sem discurso - Análise Semiótica

Rios sem discurso

Quando um rio corta, corta-se de vez
o discurso-rio de água que ele fazia;
cortado, a água se quebra em pedaços, 
em poços de água, em água paralítica.
Em situação de poço, a água equivale
a uma palavra em situação dicionária:
isolada, estanque no poço dela mesma, 
e porque assim estanque, estancada; 
e mais: porque assim estancada, muda
e muda porque com nenhuma comunica,
porque cortou-se a sintaxe desse rio, 
o fio de água por que ele discorria.
O curso de um rio, seu discurso-rio,
chega raramente a se reatar de vez; 
um rio precisa de muito fio de água
para refazer o fio antigo que o fez.
Salvo a grandiloqüência de uma cheia
lhe impondo interina outra linguagem, 
um rio precisa de muita água em fios
para que todos os poços se enfrasem: 
se reatando, de um para outro poço,
em frases curtas, então frase e frase, 
até a sentença-rio do discurso único 
em que se tem voz a seca ele combate.

(MELO NETO, João Cabral de. In: A educação pela pedra.Rio de Janeiro: José Olympio. 1979, p.26.)
O discurso mostra sua actorização formada por uma palavra que é retirada de um texto e o que pode ocorrer com o leitor para tentar reaver o sentido do texto, isto fica claro através da palavra discurso-rio. O poeta compara o rio a um texto; a palavra seria o fio de água que retirada do texto não possui sentido, como a poça de água ela fica incomunicável com as outras poças, equivale a uma palavra dentro de um dicionário. No texto tudo é relação, as palavras só possuem valor quando estão ligadas através do contexto, só assim passam a existir.
A análise da estrutura narrativa, deste poema, mostra um manipulador pressuposto: o escritor. Levando em consideração que não é possível nenhum texto se auto-escrever, já que é um ser inanimado e criação do autor, este nada pode fazer quando seu criador “corta” uma palavra de seu todo; o texto não sente a falta deste “fio d’água” para recompô-lo. Esta palavra, como já foi dito, está “muda” e portanto não pode constituir por si só um todo de sentidos, e este texto “mutilado”.
Antes de continuarmos vale uma ressalva, todo o poema é construído no nível do projeto, ou seja, o escritor (elemento manipulador) não executa a ação, apenas supõe o que pode ocorrer; ele sabe e pode fazer, mas não põe em prática, planeja.
Sem uma palavra no texto, o leitor (sujeito manipulado) pode recorrer a duas estratégias para prosseguir sua leitura:
A primeira é que o leitor pode usufruir seu conhecimento enciclopédico, realizando inferências no texto predestinado, completando, assim, o espaço deixado para retomar o sentido original;
A segunda é que o leitor vai impor um novo significado ao texto para poder prosseguir, reatando todas as lacunas reconstruindo o contexto.

Como já dissemos, a pressuposição é uma característica deste poema, pois a competência é pressuposta através das alternativas que os leitores possuem, como “o corte” no rio-discurso não se realiza realmente, mas é um acontecimento hipotético este é um conhecimento lingüísticos no uso da conjunção caso (presente no 17º verso) e se(presente no 24º verso).
Não existe sanção clara já que os fatos são estipulados pelo manipulador o que não deixa clara a ocorrência deles, contudo pode vir a ser positiva se os leitores conseguirem realizar uma das duas opções determinadas pelo autor eles poderão estar em estado de euforia com o objeto valor (o texto). As duas hipóteses são construídas sobre enunciados de estado; os leitores precisam estar de porte de objetos respectivamente “vários fios de água” e “a grandiloqüência de uma cheia” para alcançarem outro objeto, este sim o objeto valor(texto).

O poema possui predominância de elementos temáticos já que encontramos muitos elementos abstratos e é através deles que fazemos o seguinte encadeamento de temas:

a) uma palavra fora do contexto não possui valia;
b) um texto sem uma palavra conta a ser texto;
c) o autor nem sempre escreve para o leitor;
d) o leitor precisa ter competência para ler um texto;
e) Com essa competência o leitor atinge o conhecimento.

TEMA: O texto precisa não apenas das habilidades do escritor para prosseguir seu percurso, mas depende do leitor também.
Encontram-se no poema alguns grupos lexicais:

No primeiro dele encontramos palavras que pertencem ao universo da língua portuguesa como “discurso”, “dicionária”, “sintaxe”, “linguagem”, “enfrasem”, “frases”, “sentença”; isto mostra o domínio que o poeta possui da própria língua, principalmente de suas instâncias normativas.
No segundo, temos, elementos do mundo natural como: “rio”, “água”, “poço”, “fio de água”, “seca”, estas palavras se utilizam para realizar uma analogia, o poeta tem um caráter didático como se desejasse se aproximar do leitor.
No terceiro, encontramos verbos como “cortar”, “quebrar”, “estancar”, “reatar”, “refazer”, “enfrazar”, que não são características do mundo natural, mas do mundo das letras, o que mostra que o texto está construído com uma malha conotativa. O poeta não está falando do rio, mas sim da composição de um texto.
João Cabral de Melo Neto é conhecido como “arquiteto das palavras”, os verbos empregados no poema lembram trabalhos manuais dificultosos e árduos, ou seja, o poeta enxerga o ato de escrever um poema como um processo de construção e por ser difícil não sabe realmente se o leitor pode alcançar seu todo de significados. Cabral explica que ao cortar uma palavra do texto o leitor precisa, seguir adiante para alcançar o entendimento, reatar este vazio no texto, para isso deve contar apenas com suas habilidades lingüísticas e cognitivas para fazê-lo. Ou vai recorrerá a seu banco semântico, e colocar outra palavra no lugar da que está faltando ou esperar que o contexto, daí o termo, “outra linguagem”, dê-lhe a compreensão de que tanto precisa.


CRITICA E SUGESTÕES: l.antoniobn@gmail.com

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