Pular para o conteúdo principal

Lampião é macho, macho por despacho.


Difícil saber o feminino do cangaceiro Lampião. Será Lampiã? Lampioa? Ou será Lamparina? Existe o feminino de Lampião? Difícil saber, mortalmente difícil. E muito perigoso. Se especularmos por essa vereda escorregadia, alguém poderá se abespinhar e dizer que está em curso uma heresia contra o legado másculo do legendário bandido. Portanto, não lhe duvidamos da masculinidade. Fica decidido que Lampião não tem feminino, é macheza pura.
Mesmo assim, mesmo afirmando a macheza, temos aqui um problema de gênero. Não um problema do homem chamado Lampião, por favor, que este se encontra acima das suspeitas. Nosso problema de gênero diz respeito ao vernáculo: nem todos os substantivos, infelizmente, são do gênero masculino, de sorte que fica inviável defender a macheza do Rei do Cangaço sem o auxílio de palavras femininas. Macheza é substantivo feminino. Virilidade também é palavra fêmea. Hombridade, valentia, todos vocábulos femininos. Vai soar como provocação, mas a língua embaralha o feminino e o masculino, a maldita. Fazer o quê? Talvez ela não esteja à altura de descrever o destemido cangaceiro, encarnado pelo pernambucano Virgulino Ferreira da Silva (1898-1938). Ele, sim, não tinha nada que fosse emasculado; não há de ter tido, nunca, jamais, uma “porção mulher”, para adotar aqui a expressão consagrada pelo cancioneiro.
E que ninguém discuta. Cumpra-se. Foi assim que a Justiça decidiu. Foi assim que despachou o juiz Aldo Albuquerque, da 7ª Vara Cível de Aracaju, Sergipe, há pouco mais de uma semana, ao proibir a publicação e a comercialização do livro Lampião ─ o Mata Sete, de autoria de Pedro de Morais, em atendimento ao pedido da família do temível Virgulino. A família se declarou ofendida porque, na obra, Virgulino aparece como homossexual. Não é só. Ele teria sido um marido traído, uma vez que sua companheira, Maria Bonita, teria sucumbido ao adultério nos braços de um sujeito do mesmo bando, de nome Luiz Pedro. E mais: com suas perneiras de couro enfeitado, seu paletó azul e sua testeira salpicada de medalhinhas, o próprio Virgulino caiu de amores pelo mesmo Luiz Pedro.
Aí também não dá, reclamaram em juízo os descendentes. Os historiadores podem dizer à vontade que Lampião estuprava garotas indefesas, que lhes marcava o rosto com ferro quente, que sangrava lentamente os desafetos, cravando-lhes o punhal entre a clavícula e o pescoço. Podem dizer que ele castrava seus reféns, que arrancava olhos, línguas e orelhas. Até aí, não se vê ofensa nenhuma. Mas essa conversa de triângulo amoroso com pitadas homoeróticas, essa sim, ultraja a honra familiar. Por isso, os familiares pleitearam a censura, que chegou veloz e escura, feito uma peixeira noturna.
O episódio parece uma crônica dos costumes, mas é sério. Embora o processo ainda admita recursos ─ a proibição do livro já começou a ser contestada na semana que passou─, o que temos aí não é uma peça meramente cômica, mas um caso de veto à expressão do pensamento. Sem trocadilho, esse veto ao pensamento deveria nos fazer pensar um pouco mais. De que honra, afinal, nós estamos falando aqui? Há tempos, na canção “Pecado original”, Caetano Veloso cravou uma de suas boas verdades: A gente não sabe o lugar certo de colocar o desejo. Pois será que sabemos o lugar certo de colocar a honra?
Eis aí outra indagação difícil, moralmente difícil, além de muito perigosa. Esse conceito, o do macho viril, guarda um quê de animalesco, de irracional, de selvagem. Se macho, se incontestavelmente macho, o Rei do Cangaço teria um licença para aterrorizar os humildes com suas brutalidades de facínora. Ele teria sido apenas mais macho que  os demais , só isso. Daí que, ele que viveu como fora da lei, tem agora, depois da morte, a sua macheza ─ vai no feminino mesmo─ tutelada pela própria Justiça. Ele pode ser chamado de homicida e de ladrão, tudo bem. Não de marido traído. Nem de homossexual.
Esse moral polar, “monopolar”, esquarteja tudo o que seja ambíguo. E, no vasto mundo dos amores, o humano não é acima de tudo um forte, mas acima de tudo ambíguo, como a própria língua. Por isso, essa moral monopolar é desumana. Ela não sabe que, como o Diadorim de Guimarães Rosa, o jagunço valente, como Riobaldo, pode amá-lo sem entender porque ama, e suspirar, perdido: “Diadorim é minha neblina”. O mito sem neblina de Lampião é um tributo à intolerância.

Eugênio Bucci é jornalista e professor da ESPM e da ECA- USP
Fonte Revista Época nº 707 de 5 de dezembro de 2011  

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

FEMINICÍDIOS NO DF: a gestão do risco**

 ** Fabriziane Zapaga- Juíza e coordenadora do Núcleo Judiciário da Mulher (NJM) do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) Todas as vezes que um feminicídio é noticiado pela imprensa surge um misto de indignação, angústia e perplexidade. Diferentemente de outros crimes em que não há uma ligação anterior entre vítima e algoz, no Feminicídio a mulher é assassinada por seu companheiro (ou ex), pela pessoa que supostamente lhe prestaria cuidados e assistência, pelo pai de seus filhos, dentro da própria casa. Talvez por isso cause tanto estarrecimento. Dados da Câmara Técnica de Monitoramento de Homicídios e Feminicídios (CTMHF) apontam que o índice de elucidação no DF é de 98%, ou seja, é um crime em que rapidamente se identifica e condena o autor, com penas que variam de 12 a 34 anos de prisão. Para além da responsabilização dos Feminicídios, é de extrema relevância evitar que outros Feminicídios aconteçam. Dados da Secretaria de Segurança Pública apon...

MANIFESTO À POPULAÇÃO DO DF. POR SOUZA JÚNIOR*, CANDIDATO AO SENADO FEDERAL

  Clique aqui.  e acesse e baixe para compartilhar.  MANIFESTO À SOCIEDADE DO DF CANDIDATO AO SENADO SOUZA JÚNIOR   A nação brasileira viveu em seu passado recente um verdadeiro crime contra a nossa pátria e seu povo; tivemos governos que nos coroaram com um dos momentos mais tristes de nossa história, com a corrupção tomando conta e corroendo setores públicos e privados, além da institucionalização da corrupção no chamado Mensalão (STF- ação penal 470), quando diversos parlamentares foram descobertos recebendo uma mesada para apoiarem o governo da época. No DF, ainda tivemos o desprazer de ver um governador preso por corrupção.  A Transparência Internacional, por exemplo, classificou o "petrolão" como o segundo maior caso de corrupção do mundo. Todos os dias tomamos conhecimentos de novos escândalos de corrupção oriundos de governos de esquerda, envolvendo grandes empresários do país, políticos e administradores públicos. São bilhões de dólares, que poder...

(Covid - 19) . Reposta da população.

VISÃO DO CORREIO* A sociedade brasileira, em sua esmagadora maioria, entendeu a gravidade representada pela pandemia do novo coronavírus e respondeu, adequadamente, aos apelos das autoridades e da comunidade médica para ficar dentro de casa e apostar no isolamento social como forma de barrar a velocidade de contaminação da enfermidade denominada COVID-19. O momento é de resguardar as pessoas mais vulneráveis, os idosos e portadores de enfermidades como câncer, cardíacas e com sistema imunológico fragilizado. Mesmo assim, no fim de semana, ocorreram exceções, sobretudo por parte da faixa mais exposta da população aos devastadores efeitos da doença, homens e mulheres acima de 60 anos que insistiram em sair às compras nas farmácias e supermercados.  Medidas restritivas, como o isolamento social, devem prevalecer. É sabido que a maioria das pessoas vai contrair o vírus e, se todas ficarem doentes aos mesmo tempo, os sistemas de saúde público e privado vão entrar em colapso e as eq...