Raça, sexo, língua, religião, nacionalismo, democracia e fanatismo de todo tipo tomaram conta das discussões mundiais e entupiram os meios de comunicação de conceitos particulares, próprios de seus formuladores. O humanismo se politizou de forma doutrinária e fantasiada de evolução, fazendo mal à convivência humana. Uma onda de classificação por etiqueta, perfil e comportamento, para fazer do direito a diferença uma diferença de direito. Um culto ao eu-particular-e-único, que estimula mágoa, leva ao abuso de confissões, o desnudar-se todo, definindo a identidade específica como caminho para a redenção. A sociedade da reclamação está doente e não fala mais em progresso para todos. Só fala de si mesma.
Desde
que os cientistas da Universidade de Nottinghan, na Inglaterra, criaram um
útero artificial capaz de desenvolver um embrião fora da barriga da mãe, a
sexualidade começou a perder prestígio
como anatomia e um ato de amor. Separando a procriação e a distinção biológica
dos papéis desempenhados por homens e mulheres, vem aí um mundo diferente e
pior. As derivas no conceito de família começam a rodar a cabeça dos casais
quando se tornou possível acompanhar , com especial curiosidade, a formação do
corpo e da cabeça do bebê. Os pais não deram mais folga à sua ansiedade,
interessados em entender essa habilidade humana fantástica em se autoformar e
nascer sem defeito. Se tudo der “certo” para a ciência da inseminação
artificial “in vitro”, o desejo de
ter filhos, de quem assim o desejar, não precisará mais recorrer a uma mulher,
nem se interessar em saber quem é o homem.
A
descoberta das técnicas de fertilização “in
vitro” tornaram o ser humano um detalhe na fecundação, facilitando a
ambição de uma ciência que se prepara para oferecer ao mundo o principal passo
para a medicalização da vida.
Quem não dá valor à família prepare-se
apara viver num mundo sem parentes. Quem vê a vida como busca da alegria e da felicidade
prepare-se para o pior. As maternidades industriais do futuro, que
cuidarão da reprodução assistida, poderão receber encomendas de pessoas. Será
possível planejar e rejeitar crianças. E tal submissão da ciência ao
arbítrio dará a perversos o poder de fazer fanáticos.
Sabemos
que a sociedade se agrupa em torno de valores, autênticos ou deteriorados, e
embaralha suas ilusões e sonhos, quando não sabe mais distinguir um do outro.
A doutrinação política gosta de
certezas e tem pouca vocação para a dúvida. Quem só fala depois de saber o que a opinião pública e
grupos querem ouvir não tem necessidade da inteligência e discernimento. Melhor
ser papagaio. O silêncio da maioria é defesa para ficar acima da
confusão sem fazer parte da controvérsia. A política, como uma atividade
mundial, vale-se da publicidade para esconder as verdadeiras ideias, algumas da
aparência medonha, como se vê nas razões de Putin e durante a eleição francesa.
Logro, é o que se vê na grande e na pequena política de personagens capazes de
ter opinião sobre tudo, sem o risco de desvendarem a verdadeira representação
que têm de si. Capazes de se autoproclamarem profetas para infligir à sociedade
valores sobre os quais não existe nenhuma certeza e que não deveriam ser
tratados com hostilidade, rótulos, preconceitos e baixa estima.
Branquitude, brancofilia; negrofilia,
negrofobia; masculinista, feminista; estrangeiro, nacional; libertário,
liberticida, direitista, esquerdista, etc, etc, são pólos aparentemente antagônicos
de uma sociedade dedicada à colonização dos egos, pela rotulação da
individualidade. Todas estas distinções e dissociações parecem mais uma
lenda vasta e obscura plantada pelo doutrinarismo político identitário na cabeça das pessoas, do
que fruto real da história da vida humana. Parecem luz, esclarecimento,
clareza. São mais trevas, sombra, escuridão.
Quem não aderir ao conceito preconcebido de
direito especial para grupos e pessoas, próprio
da política doutrinária, logo é rechaçado , ofendido, rotulado. A
história das mentalidades, do cotidiano, da vida vivida pelo prazer da vida, da
cooperação na luta contra o sofrimento, da solidariedade, acaba sendo
achincalhado pelo doutrinarismo fanático incapaz de ver o que existe além do
que é moda.
A
história dos direitos civis e da evolução da vida democrática não convive com
supremacismos ou com qualquer teoria de substituição de um povo por outro.
Estar aberto a novas políticas sociais, a maior integração de todos à
sociedade, exige um tom mais adequado, não sectário, sem usar insulto ou
xingamento como argumento. Democracia
é tirar a maldade da linguagem e pôr um freio na manipulação da identidade do
outro.
*Paulo Delgado – Sociólogo.
Publicado no CB de 24 de abril de 2022, p.9; Caderno Mundo.
email: contato@paulodelgado.com.br
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