O que a irmã de Clarice deixou para a história
RAQUEL COZER
RESUMO- Nove anos mais velha que Clarice, a também escritora Elisa
Lispector guardou lembranças mais duras da infância e aprendeu a viver
com as atenções voltadas para a irmã. De sua produção literária, menos
ousada que a da autora de "A Paixão Segundo GH", destacam-se relatos
biográficos como "Retratos Antigos", publicado agora.
SEIS DIAS ANTES da morte de Elisa Lispector, irmã mais velha de Clarice, o barco Bateau Mouche 4 afundou na baía de Guanabara.
O naufrágio que matou 55 pessoas na véspera do Réveillon de 1989 não
tinha relação com Elisa -que morreu naquele 6 de janeiro com câncer e
problemas renais-, mas foi responsável por uma triste ironia final em
sua história.
No dia 7, o registro na imprensa carioca do óbito da autora de "No
Exílio" (1948) foi ofuscado pelo anúncio, muito maior, da missa de
sétimo dia da mais famosa vítima do Bateau Mouche, a atriz Yara Amaral,
que até pouco antes estava no ar na novela "Fera Radical", da Globo.
Com isso, quase ninguém àquela altura soube da morte de Elisa -como se
não bastasse ela ter passado a vida sob a sombra de Clarice (1920-77).
Elisa hoje é mais lembrada porque "No Exílio", seu segundo romance,
virou fonte para pesquisadores de Clarice. O livro, autobiográfico,
segue uma jovem judia desde a fuga pela Europa com os pais e as irmãs
até a adaptação ao Brasil, numa série de humilhações e misérias.
Clarice, nove anos mais jovem, não teria como se lembrar do que a irmã
conta ali -era um bebê na ocasião da fuga- e a parte de que se lembra ou
soube depois ela preferiu nunca explicitar.
Como fonte histórica, porém, "No Exílio" tem a desvantagem de ser, a
priori, uma ficção. O que por décadas apenas a família soube é que, nos
anos 70, Elisa iniciou um resgate não ficcional da saga dos Lispector. É
esse material, datilografado e rabiscado em 28 laudas -"esboços a
serem ampliados", como anotou Elisa-, que a Editora UFMG lança nas
próximas semanas. "Retratos Antigos" [org. Nádia Battella Gotlib, 144
págs., preço a definir] sai com dois cadernos de fotos, a maioria
inédita. As mais antigas, dos avós de Elisa, são do início do século
20, na Ucrânia, então pertencente à Rússia.
LEGADO Elisa, que nunca casou nem teve filhos, dedicou aquelas
páginas aos sobrinhos, em especial a Nicole -neta de Tania, a irmã do
meio. O texto foi concebido para que, crescida, a sobrinha-neta soubesse
o passado da família (leia trecho na página 8).
A história é contada a partir de desbotadas fotografias de um álbum
"aristocrático", de "capa e contracapa trabalhadas em alto relevo sobre
almofadas forradas de puro couro da Rússia", uma lembrança dos tempos
em que os Lispector ainda resistiam aos pogroms, os ataques contra
judeus e outras minorias, comuns na Rússia do início do século 20.
Entre descrições de personagens fotografados -ou não, caso do avô
Shmuel, que "jamais permitiu ser retratado, em observância ao preceito
religioso que proíbe a reprodução da figura humana"-, ela faz uma
releitura histórica informal, abrangendo de costumes rurais russos à
adaptação dos migrantes ao Nordeste brasileiro.
"É uma obra importante sobre a questão da imigração judaica no Brasil",
afirma Wander Melo Miranda, professor de literatura comparada e diretor
da Editora UFMG.
Parte do conteúdo já era conhecida desde que, em 2009, Benjamin Moser
lançou a biografia "Clarice," (Cosac Naify). Durante as pesquisas, o
americano teve acesso ao texto e dele reproduziu trechos e informações. A
publicação na íntegra, agora, permite reconhecer no texto seu caráter
de "não acabado, flagrado em momento mesmo de processo de elaboração,
como se ainda houvesse coisas a dizer", como escreve Nádia na
apresentação.
A pesquisadora esclarece ainda por que o material permaneceu tanto tempo
inédito. Quando Elisa morreu, seu espólio passou à irmã Tania, que o
manteve praticamente intocado. Com a morte de Tania, em 2007, sua filha,
Márcia Algranti, e a neta, Nicole, abriram o acervo a pesquisadores.
Para além da temática judaica, "Retratos Antigos" ajuda a esclarecer ao
menos um ponto nebuloso da biografia de Clarice: a doença que matou,
lentamente, sua mãe. O texto explicita que Mania Lispector sofria de
hemiplegia (paralisia parcial do corpo) e que esse estado resultou de um
"trauma decorrente daqueles fatídicos pogroms".
Não é pequeno o impacto da paralisia da mãe na vida e obra de Clarice.
Para ficar num raro exemplo explícito, já que em geral ela era mais
discreta que isso, há a crônica "Restos do Carnaval". O texto lembra a
noite em que ela, criança, precisou interromper seus preparativos para a
festa e correr envolta em crepom pelas ruas de Recife atrás de
remédios para a mãe. "Quando horas depois a atmosfera em casa
acalmou-se, minha irmã me penteou e pintou-me. Mas alguma coisa tinha
morrido em mim."
TRAUMA As informações trazidas por "Retratos Antigos", somadas a
depoimentos e a trechos de "No Exílio", ajudaram Benjamin Moser a
concluir que a mãe de Clarice contraiu sífilis após ser estuprada por
cossacos -estupros coletivos eram comuns nos pogroms, e a paralisia é
uma das evoluções possíveis da doença.
Na apresentação do novo volume, Nádia ignora a hipótese. Usa o termo
genérico "trauma". À Folha ela detalha: "Hemiplegia é a paralisia
parcial causada por um baque, no sentido físico, um soco, um tranco que
ela levou". Embora admita ser historicamente possível, a biógrafa diz
considerar a leitura de Moser "um equívoco". "A única pessoa que falou
em estupro foi ele. Nunca ninguém falou isso."
Um primo de Clarice, Henrique Rabin, chegou, sim, a falar isso à própria
Nádia, em 2004. Numa nota de rodapé da edição ampliada de "Clarice,
uma Vida que se Conta" (Edusp, 2009), a biógrafa anota que Rabin
"vale-se de sua experiência de médico para lançar a hipótese de que o
processo infeccioso pode ter sido proveniente de sífilis contraída,
possivelmente, durante os pogroms, quando mulheres eram violentadas
(...)".
Mas é só uma nota de rodapé. Pode-se dizer que antes de Moser -mais
confortável, como estrangeiro, para abordar temas delicados para a
família- ninguém falou tão abertamente sobre isso. Era uma dor familiar
"muito bem guardada", como disse à Folha a canadense Claire Varin,
renomada estudiosa de Clarice. Ela conta ter ouvido a história de Olga
Borelli, amiga íntima da escritora.
"Clarice contou a Olga. Nunca usei a informação porque não cabia nas
minhas pesquisas. Acho a doença da mãe mais relevante que sua causa para
entender Clarice", diz Claire, que Moser entrevistou para a biografia.
Para ele, a dor de saber dessa violência também joga luz sobre textos
da escritora.
Na família Lispector, ninguém contestou oficialmente as afirmações da biografia de Moser.
PRIMOGÊNITA Se a autora de "Laços de Família" (1960) motiva discussões que para alguns extrapolam sua obra, Elisa permanece pouco estudada.
A primogênita de Pinkhas e Mania Lispector lançou o primeiro livro,
"Além da Fronteira", em 1945, aos 34 anos, dois anos após a estrondosa
estreia de Clarice, com "Perto do Coração Selvagem". Depois, publicou
mais seis romances -o quarto, "O Muro de Pedras", considerado o seu
melhor, recebeu prêmios da editora José Olympio e da Academia Brasileira
de Letras- e três volumes de contos.
Afora o que hoje está em sebos, a obra de Elisa quase desapareceu. Um
único romance, "No Exílio", está à venda pela José Olympio, em reedição
de 2005. Na ocasião, a editora comprou também os direitos de "O Muro de
Pedras", mas as vendas fracas de "No Exílio" a fizeram "repensar o
projeto da autora na casa", segundo a gerente editorial, Maria Amélia
Mello.
Mas a primeira das irmãs Lispector também angariou admiradores. O mais
fiel deles deve ser Jeferson Masson, 47, que há 20 anos reúne um
riquíssimo material para algo que pode ser dissertação de mestrado,
ainda sem orientador, ou biografia, ainda sem editora. "Quando lia
Clarice, mesmo que doesse, eu encontrava uma luz. Na Elisa eu não via
saída. Os romances dela me entristecem muito."
Masson, hoje fiscal da prefeitura do Rio, diz que teve de adiar os
planos acadêmicos por questões financeiras. Em 1988, pouco antes de
concluir a graduação em letras na UFRJ, pensou num estudo sobre
literatura e testemunho centrado no desenraizamento dos personagens
traumatizados da autora.
Chegou a falar com ela por telefone naquele ano. Do pequeno apartamento
em que vivia sozinha na rua Tonelero, em Copacabana, ela o atendeu com
um fiapo de voz. Aos 77 anos, sofria com diverticulite e uma fratura
mal consolidada num joelho. Achou que o rapaz do outro lado da linha
queria saber de Clarice, como recorda Masson.
"Minha pesquisa é sobre você", ele lembra ter dito à Elisa. Avisou que
iniciaria no ano seguinte, 1989, ao ela pontuou, resignada: "Não acho
que eu tenha muito tempo pela frente." Meses depois, Masson soube pela
crítica Bella Jozef (1926-2010) que Elisa tinha morrido. Também para ele
-que hoje tem uma cópia do obituário no "Jornal do Brasil" citado no
início deste texto- tinha passado despercebido.
BUROCRACIA Outro admirador de Elisa, segundo Masson, foi Jarbas
Passarinho, acriano alçado à política nacional durante a ditadura
militar. Funcionária pública desde os anos 30, Elisa foi secretária de
Passarinho quando este assumiu o Ministério do Trabalho, nos anos 60.
Então ela se aposentou, e o ministro a chamou no gabinete e lhe ofereceu
uma caneta de ouro pelos serviços prestados.
A burocracia que enfrentou nas três décadas de funcionalismo foi motor
para a produção ficcional. A relação com a irmã caçula também. Foi o
escritor Renard Perez, amigo de ambas, quem contou a Jeferson Masson e
Benjamin Moser, em diferentes ocasiões, que Elisa chorou quando ele,
após ler os originais do romance "Corpo a Corpo" (1983), perguntou se
eram Clarice e ela retratadas numa relação de marido e mulher. (Aos 84
anos, Perez atendeu ao telefonema da Folha a sua casa, no Rio, mas disse
que sua memória está fraca.)
Publicado após a morte de Clarice, "Corpo a Corpo" trata de uma dolorida
relação de amor. Na vida real, Clarice amava Elisa, que também a
amava, mas a irmã mais velha se sentia sufocada, segundo vários
testemunhos, pela presença tão mais impactante da outra.
Elisa era "até atraente", como diz Moser, mas Clarice era mais; a
primogênita tinha jeito para escrever, mas não era genial como a caçula.
Isso tornava também Elisa mais reclusa. "Clarice tem o passado
difícil, mas era linda, genial, casou, teve filhos. A história dela
teve suas recompensas. De Elisa, que ainda por cima lembrava as dores
da fuga da Ucrânia, não se pode dizer o mesmo", diz Moser.
Sobre a produção literária, a canadense Claire Varin avalia que a de
Elisa "não é tão rica". "Ela era uma romancista mais tradicional, ficava
na psicologia dos personagens, enquanto Clarice ultrapassava
psicologia, consciente e inconsciente, ultrapassava tudo."
"Elisa é mais interessante que boa", avalia Nádia. "A obra ousa menos
tanto no modo de contar como nos temas." Mesmo assim, a biógrafa de
Clarice agora quer se voltar para Elisa. Para depois de "Retratos
Antigos", planeja uma fotobiografia da autora de "O Muro de Pedras",
assim como fez com a de "A Paixão Segundo GH".
Para isso, recorrerá ao acervo de Elisa, hoje dividido entre a sobrinha
Márcia Algranti e o Instituto Moreira Salles do Rio, que recebeu em
2007, de Nicole, material ainda não investigado. O acervo no IMS-RJ
inclui 127 itens de correspondência e 98 "de produção intelectual",
segundo levantamento prévio, entre os quais o datiloscrito "Pelos
Caminhos da Cidade Estranha", que não se sabe se é inédito.
ENTREVISTA O tema da perseguição aos judeus nunca transpareceu em
Clarice como em Elisa, embora a primeira é que tenha se tornado uma
das autoras da diáspora mais celebradas do mundo.
Nas entrevistas de Clarice, o assunto também aparece de forma vaga,
inclusive nas perguntas. Talvez por ela não tratar disso em seus textos,
os entrevistadores sempre achavam melhor repisar questões sobre como
começou a escrever e se de fato não gostava muito de ler.
Isso fica claro na reunião de entrevistas e reportagens "Encontros -
Clarice Lispector [Azougue Editorial, org. Evelyn Rocha, 192 págs., R$
29,90], que terá lançamento no sábado, no IMS, dentro da programação do
"Hora de Clarice" -evento similar ao recente "Dia D" de Drummond. Um
raro questionamento sobre a percepção dela acerca do judaísmo no que
escrevia é feito em reportagem de 1971 do "Correio do Povo".
"Conscientemente, não [percebo]", diz a autora.
Das 16 conversas, destaca-se uma descoberta por acaso em 2002: a
primeira entrevista que deu na vida, ainda como estudante de direito, em
1941, meses antes de começar a escrever "Perto do Coração Selvagem".
Quem encontrou o material foi o jornalista paulistano Vilmar Ledesma,
quando foi à Biblioteca Mário de Andrade folhear exemplares (que quase
se desfaziam) da revista "Diretrizes", fundada em 1938 por Samuel
Wainer.
Diz o texto: "E vem uma jovem a quem abordamos. Chama-se Clarice
Lispector e tem traços da raça eslava. É terceranista e acede
prontamente em responder às perguntas do repórter." Retratada de saia
xadrez e bolsa debaixo do braço, ela já mostrava peculiar atitude.
Questionada sobre que escritor da época se compararia com Machado de
Assis (1839-08), conclui: "Em minha opinião, seria mais fácil superá-lo
do que igualá-lo. Machado tinha muita personalidade. Como romancista,
ele não é seguro, não obedece a normas; por isso me parece fácil
superá-lo".
Como Clarice viveu fora do Brasil de 1944 a 1959, a entrevista acaba
sendo a única antes de um longo hiato até o início dos anos 60, quando
saiu "Laços de Família".
A reunião guarda bons momentos para além da famosa entrevista de 1974 ao
"Pasquim" (quando, ao falar da língua presa, comenta que não pode
pronunciar a palavra "aurora", "senão todo mundo cai para trás") e da
ainda mais conhecida última entrevista, à TV Cultura, em 1977
(disponível no YouTube).
É o caso de um curioso diálogo entre duas reportagens. Na primeira, de
1969, do "Jornal da Tarde", o repórter escreve que Clarice "engordou
muito" e que "mãos tremem ao acender o cigarro mentolado".
Três anos depois, ao receber uma jornalista o "Correio da Manhã", ela
deixa perceber o quanto pode ser ferida a vaidade de uma estrela:
"Imagine que um repórter veio aqui me entrevistar e, além de dizer que
eu estava gorda, disse que as minhas mãos tremiam. As minhas mãos não
tremem. [...]Você acha que eu estou gorda?".
Sobre Elisa, em depoimento de 1976 ao Museu da Imagem e do Som, Clarice
demonstra consciência de que a irmã passou mais agruras do que ela na
infância. "Eu perguntei um dia desses à Elisa, que é a mais velha, se
nós passamos fome, e ela disse que quase", conta, como quem entende a
sorte de precisar perguntar isso.
A história é contada a partir de desbotadas fotografias de um álbum
"aristocrático", uma lembrança dos tempos em que os Lispector ainda
resistiam aos pogroms na Rússia
"Elisa é mais interessante [como testemunha histórica] que boa [como
escritora]", avalia Nádia. "A obra dela ousa menos tanto no modo de
contar quanto nos temas"
Jarbas Passarinho era fã de Elisa. Ela trabalhou com ele nos anos 60
e, ao se aposentar, Elisa foi chamada ao gabinete dele, que lhe
ofereceu uma caneta de ouro pelos serviços prestados
Elisa era "até atraente", diz Benjamin Moser, mas Clarice era mais; a
primogênita tinha jeito para escrever, mas não era genial como a
caçula. Isso tornava também Elisa mais reclusa